![]() Fortunas e Diásporas (abarbanel)
Jorge Luiz da Silva Alves ![]() Acabara de reler as contas e projetos de Santangél e Senior quanto à empresa do navegante genovês quando o estafeta trouxera-lhe o decreto. Sentira em seus ombros o fardo de suas origens, embora não estranhasse a eterna condição de retirante, era um apanágio de sua espécie. Egito, Nínive, Babilônia, Roma, viviam condenados desde antes dos pregos e lanças do Gólgota, pagadores duma ofensa anterior ao bezerro dourado de Aarão. Yitzchak, ilustrado sefardita(*) cuja família remontava ao Rei David, sempre cuidara dos seus, mesmo em seu palácio de Queluz, e iluminara com seu conhecimento e praticidade as longas trevas dos audazes caraveleiros do Tejo e Porto, hábeis com astrolábios e cartas de marear mas péssimos financistas. Após a tomada de Arzila (Marrocos) aos berberes, arregimentara numerário suficiente para libertar alguns judeus escravizados após a campanha, enquanto opinava com estilo e inteligência sobre as questões políticas em que os fidalgos de Avis envolviam-se. Afonso V nele confiou e legara-lhe a administração das finanças portuguesas. Seu amor pelos pobres e oprimidos – mesmo os de mourisca origem – granjeara-lhe certa reputação. Mas nunca se iludira, nem mesmo na tenra idade, quanto os incovenientes de sua origem; quando o novo rei, João II “O Príncipe Perfeito”, acusara-o de conspirar contra a Coroa ao lado do Duque de Bragança sem provas definitivas de sua participação no evento, sabia que muito mais açulava-o a cobiça sobre o patrimônio do Abarbanel(*) do que qualquer indício de traição. E enquanto homiziava-se em Castela, Yitzchak soube do confisco de sua enorme fortuna pelo imperfeito monarca luso e pôs suas venerandas barbas de molho ocupando-se de estudos bíblicos em Toledo. Mas não demorara muito nas deambulações sobre Josué, Juízes e Samuel: logo, seu talento administrativo falou mais alto e já se encarregava de cuidar das receitas e abastecimentos ao exército da dupla Coroa Espanhola de Castela e Aragão, em decisiva arrancada contra os mouros de Granada. Curiosamente, de ambos os lados da península religiosamente sinistrada, o episódio de Arzila rendera-lhes iguais respeitos da mesma forma que o Cid Campeador amealhara pelas armas em Valência, séculos antes. Só que já sabia da forte diferença dos sangues de Israel e Pelágio, e qual deles, fatalmente, coagularia nas artérias da cobiça humana. Seria uma questão de tempo até que outra Diáspora ocorresse-lhe. E então, o estafeta trouxe-lhe o Decreto de Alhambra(*). De todas as formas, Yitzchak procurou demover Fernando de Aragão a anular o decreto que expulsava todos os judeus da Espanha, chamou-lhe à razão para os polpudos empréstimos para financiar as guerras mouriscas, debalde. Não entrando aqui na veracidade( ou não) do fato, o Abarbanel sefardita decidira expôr em laudas a sua decepção contra a sombria traição dos príncipes. Às vésperas de seu segundo Êxodo, transcrevera longo texto sobre a decisão real, censurando o apoio de Tomás de Torquemada e escapando das petições emocionadas de amigos como Abraham Senior, de Segóvia, que o ajudara a bancar a aventura transoceânica de Colombo. Achava-se cansado de tudo, trazia embutido em seu longevo saber as ruínas do Templo e as pedras derribadas de Massada, parecia um solitário rabino solto no profano Coliseu da cristandade para que fosse devorado pelas feras dum interminável antisemitismo, cada dia mais forte, preparado, regulamentado sui generis pela natureza humana. Fluíra pelo Mediterrâneo feito Paulo nas Viagens; entrara a serviço do rei de Nápoles até que os franceses tomassem a cidade – e seu restaurado patrimônio pessoal. Encontrara seu porto seguro na Veneza dos Doges, mas os anos de trabalho e escapadas minaram-lhe, enfim, a chama. Repousara satisfeito como um Moisés a vislumbrar a Terra Prometida, mas sem poder adentra-la. Seu filho, Judah, voltaria a residir na Espanha, mas antes teve o cuidado de confiar a um certo primo, Egon Schwartzmann, ainda em Veneza um certo cofre com importantes anotações de como edificar fortunas inimagináveis no contato com influentes e influências diversas. Não há como confirmar, mas quando Pádua (onde Yitzchak fora enterrado) sucumbia ante o cerco de Maximiliano I, Egon fizera uso dos expedientes do Abarbanel para arrecadar fundos que promovessem a defesa e reação da cidade ante a investida germânica. E para evitar que a ingrata amnésia dos monarcas pusessem-no na berlinda dos expurgos, escapara para a Grécia otomana, onde vivera relativamente bem num seguro anonimato... ...até que um fiscal da prefeitura do antigo Distrito Federal, já em 1944, percebendo que um certo jovem vendedor de capas para título eleitoral possuía um timbre de voz absolutamente cativante – e penetrante visão para a captura de potencial freguesia - , convidou-o para um teste na Rádio Guanabara. Mas nem mesmo o programa da conceituada estação ou o seguro vencimento de militar anos depois interessou tanto ao rapazola descendente de gregos e turcos quanto à locução das barcas entre Rio e Niterói, onde expandia toda a sua verve na escolha criteriosa dos sucessos do momento quanto ao inédito sorteio de produtos na compra de cervejas e refrigerantes. Na verdade, todos ganhavam, passageiros, comissionados e associados; mas o rapaz de nome esquisito – Abravanel – agia como se fosse a coisa mais natural do mundo, esse moto-contínuo de produzir fortuna com alegria, descontração, e uma eterna curiosidade nuns calhamaços amarelecidos pelo tempo, subtraídos que fora de seus desinteressados parentes e que, após cuidadosa tradução dum vizinho levantino na Lapa carioca ex-domador de leões, tornara-se, em definitivo, sua leitura de cabeceira. Até hoje. http://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Abravanel http://pt.wikipedia.org/wiki/A_resposta_de_D._Abravanel_ao_Decreto_de_Alhambra (Fotomontagem: Yitzchak Ben Yehuda Abravanel, 1437-1508; Senor Abravanel, ou Sílvio Santos, 1930 -) (*) Abarbanel - a outra maneira com que os portugueses referiam-se ao comentador da Bíblia e financista judeu, administrador de receitas das coroas de Portugal, Espanha, Nápoles e Veneza, entre os séculos XV e XVI; nascido em Lisboa e falecido em Veneza. Enterrado em Pádua durante a guerra de Veneza contra várias nações - a Liga de Cambrai. (*) Sefardita - judeus oriundos da Península Ibérica e norte da África, expulsos dessas regiões pelas monarquias da época a soldo da Inquisição. http://www.jorgeluiz.prosaeverso.net Jorge Luiz da Silva Alves
Enviado por Jorge Luiz da Silva Alves em 02/01/2012
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